ELIANE ACCIOLY
Eliane Accioly Fonseca, poeta e terapeuta. Psicanalista, educadora somática-existencial, pesquisadora e ensaísta. Mestre em Psicologia Clínica e doutora em Comunicação e Semiótica, PUC São Paulo.
Parecerista da Revista de Psicologia Perfil, da UNESP, Campus de Assis. Há duas décadas investiga as diferenças e convergências, encontros e discrepâncias entre os ofícios poético e terapêutico, práticas cotidianas, cartografando fronteiras entre a clínica e a arte.
RAPSODIAS. Selección de poesia contemporânea. Montevideo: aBrace editores, 2010. 96 p. Ex. bibl. Antonio Miranda
Confissões de Francisco
A vagina desta mulher é uma boca,
suga meu falo e seu mel
extrai o sumo
e me traz o arrego
do menino exausto de pelejas
nos jogos e brincadeiras
Dentro dela são quatro os meus olhos:
dois ambarinos e dois de todos os azuis
Dois exploram os achados
e os ambarinos sendo âmbar, acariciam
Dentro dela meus sonhos de deserto,
o tempo nómade,
tendas forradas de tapete persa,
danças do ventre
Em teus seios atravesso dunas,
mordisco bicos de luas
Nessa moça monto camelos,
cavalgo éguas,
escuto a água das nascentes
Nesta menina sou feito de primórdios
e na Bíblia encontro as minhas,
as dela, e as nossas mãos
Descobertas de Clara
Em ti encontro calma
o tempo sem pressa
aquele (tempo) sem tempo
onde demoro
Quando meu medo
me deixa na rua a tremer
teu chamado me resgata:
_ Estou a tua espera,
não vens, Mulher de Deus?
Escuto, e nua renasço
A vagina entranhas lábios
língua boca olfato tato pele
correm ao teu encontro
beijam o freio do teu falo
Soltas as amarras teu falo penetra
lateja em mim me faz pulsar
Nos teus gemidos vivo dor
calor arrepio êxtase gozo
Juntos ocupamos dois corpos,
o branco e o moreno,
moradas do InstantEterno
Na tua cama somos carne e suor da terra
até que os corpos se dissolvem em luz
entre lençóis de água
É quando sabemos:
não há começo
e nunca houve fim
Confissões de Francisco
Minha Putinha
trepadeira de primeira
Que poder tens?
Que fazes comigo?
Meus queixumes
doem no meu corpo
na minha pele, membranas,
meus medos morrem de susto
Se falas: "Vamos repousar?"
de ouvir tua voz e desejar obedecer
ao teu pedido, vejas cresço e latejo
Dê-me tua mão, assim, venhas,
me sentes, vês?
Quero teu toque
e me experimentar macho assim,
contigo me sinto homem como antes nunca
Descobertas de Clara
"O que fazes comigo?"
Teus queixumes
trazem a música dos milênios
Teus ais e sustos evocam cavernas
onde acendo fogueiras
e amamento meninos
Contigo o vasto tempo não acaba
em ti o tempo e o espaço conjuminam
Moramos nas dobras
e palmilhamos úmidas fímbrias
Contigo o mundo para
e para mim teu corpo inteiro existe
Não, não é meu o poder que te assusta,
e desconfio, nem teu,
sossega Filho do Homem
Poderosas são as cavernas
as crianças apa
scentadas,
defumar e dar sabor à tua caça te servir e te dar de comer
O poder se esconde no nosso quarto de lua
Confissões de Francisco
Esta mulher não se veste
se enrola em mantos monacais
Para cobri-la
e dela fazer carne de minha carne,
sangue do meu sangue,
descasco-a
separo as camadas da cebola
as pétalas da alcachofra
uma a uma devoro
chego ao miolo,
ao coração da flor
Não me servem as palavras
chegar me serve
Descobertas de Clara
Este homem é frugal
é só um homem
e a casa dele apenas uma casa
Ele traz o gosto do silêncio
que me silencia
para escutar o turbilhão vazio
Comigo este homem não usa malhas de aço
armas de fogo ou brancas
Dou-lhe a mão,
abandono atávicas cidadelas,
e o muro blindado se desfaz
Seus beijos me guiam
meus olhos se fecham se o sigo,
deixo que veja por mim
e me vejo se ele me vê
Nele conheço o homem inteiro,
mundos e gemidos,
vivo o universo escuro
A ele me entrego à margem dos riachos
Este homem é um menino
que brinca comigo de Adão e Eva, e me conta:
"O Paraíso não existe
nós existimos"
Desde que o mundo é mundo
lavamos ele e eu a fala das lavadeiras
e rimos relinchos de cavalos
Para ele só há o presente
arcaico e milenar,
ANTOLOGIA ME 18. Mulheres Emergentes. Belo Horizonte: Anome Livros, 2007. 112 p. 14 x 205 cm Ex. bib. Antonio Miranda
A MORTE DO GATO
Enquanto o gato que me habitava morria,
(sete vidas espertas e bem vividas agora moribundas)
um espelho explode todo um planeta,
a noite escura abate minha alma:
que mais em mim quebrando se esvaia?
Como ficar sem os muros
as heras e unhas-de-gato
as noites de cios vadios
as brigas e a malandragem
os gritos nas madrugadas
as travessias de ruas?
Sem o vício por sardinha
sem as cumbucas floridas
entornando leito ou água?
Sem os dengos
sem as manhas
o novelo arrepiado
e a poltrona bege rasgada
de afiar vinte garras?
Como perder o poder
de fazer tremer e correr
ratazanas de baratas?
A oitava vida parte, lunar,
em tranças pretas e prata
Nenhum príncipe para me acordar
(mas também, nenhuma torre
de onde ser libertada)
A grande morte chegara?
Passada a quarentena
brotos de um verde tímido, os vigias guardiões,
me tiram da cidadela gritando uma notícia:
“ouça o poeta a forjar um dia mais
martela a bigorna,
não sons de cristal, ne de bronze,
as palavras — esteira de mil sinos —
acordam inteira uma cidade, escuta!”
Um último suspiro apaga a chama da pena de mim
secos os olhos, abro cortinas e persianas
com a força dançarina de mãos e braços,
e felina, (a isto não renuncio...)
espreguiço diante de um Sol acolhedor
a letargia sim espanto em uma cascata gelada
(coisa que gatão abomina)
Me penteio, escovo os dentes
visto velhas pantalonas
e descalça, preparo-me para rodar
mais algumas tantas milhas
por estreitas vigílias escarpadas, não mapeadas
A SURPRESA
O gato-maravilha que em mim morreu
muitas vezes retorna,
cara redonda e invisível
Sua sombra errante corre livre
na saudade de bandos vadios
arrepiando as ruas e as paredes
de meu corpo
Intumescente lábio de lua crescente
fixo só na aparência
ri de mim, Alice,
prisioneira dos contrários,
o país dos espelhos
onde me extravio
na aprendizagem banal de mágica
de ser sendo humana
*
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Página ampliada e republicada em abril de 2022
Poesia erótica – Poesia pornográfica
Página publicada em novembro de 2019
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